VOCÊ SABIA – EDIÇÃO 11

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Por Pedro Paulo Diniz

A erliquiose é uma das doenças transmitidas por carrapatos mais comum no Brasil, presente em 5% a >50% dos cães testados, dependendo da região do país (1, 2). Ehrlichia canis é a espécie mais comum no Brasil , transmitida pelo carrapato Rhipicephalus sanguineus e infectando inicialmente monócitos e macrófagos, mas também células da medula óssea (figura 1). Os sinais mais comuns são febre, anorexia, petéquias, epistaxe, perda de peso, linfadenomegalia e esplenomegalia, mas vários outros sinais podem ocorrer, como alterações oculares (uveíte) e neurológicas. Alterações comuns no hemograma e bioquímico incluem anemia não-regenerativa, leucopenia, trombocitopenia e elevação de enzimas hepáticas (ALT, AST). A presença de mórulas em monócitos confirma a suspeita clínica, mas isso acontece em <10% dos cães infectados. A PCR é o teste de diagnóstico mais sensível para a fase aguda, e a sorologia é mais sensível para as fases sub-clínica e crônica.

Figura 1. Mórula de Ehrlichia canis (seta amarela) em esfregaço de medula óssea de um cão. (Fonte: Dantas-Torres Parasites & Vectors 2008 1:25, reprodução com permissão baseada na licença Creative Commons)
Figura 1. Mórula de Ehrlichia canis (seta amarela) em esfregaço de medula óssea de um cão. (Fonte: Dantas-Torres Parasites & Vectors 2008 1:25, reprodução com permissão baseada na licença Creative Commons)

A inflamação sistêmica causada pela erliquiose pode afetar o coração por mecanismos ainda não totalmente esclarecidos. Em humanos, alterações cardíacas ocorrem em 16% dos pacientes infectados, com a ocorrência de casos fatais (3). Entretanto, na rotina clínica veterinária, cães com erliquiose são raramente avaliados quanto a presença de alterações cardíacas, apesar destas serem observadas em cães experimentalmente infectados (4). Vejamos o caso a seguir: o eletrocardiograma abaixo (figura 2) foi obtido de um cão adulto da raça Pastor Alemão com quadro de erliquiose aguda, caracterizada por febre, anorexia, e letargia com 3 dias de duração. Distúrbios de coagulação primária (petéquias, equimoses, epistaxe) não foram detectados no exame clínico. A presença de ritmo irregular durante a auscultação sugeriu a presença de arritmias.

 

Figura 2. Bloqueio atrioventricular do terceiro grau em um cão com erliquiose aguda. As setas amarelas indicam a localização da onda P. (Fonte: Pedro Diniz, arquivo pessoal)
Figura 2. Bloqueio atrioventricular do terceiro grau em um cão com erliquiose aguda. As setas amarelas indicam a localização da onda P. (Fonte: Pedro Diniz, arquivo pessoal)

Este paciente não apresentou quadro clínico severo nem sinais de baixo débito cardíaco (síncope, ataxia). Os únicos achados laboratoriais foram anemia e trombocitopenia moderadas. Entretanto, o ECG demonstra claramente a presença de um distúrbio na condução atrioventricular. Este paciente recebeu tratamento com doxiciclina na dose de 5 mg/kg PO a cada 12 horas e o eletrocardiograma foi repetido no terceiro dia de tratamento (figura 3).

Figura 3. Eletrocardiograma do mesmo paciente da figura 2, no terceiro dia de tratamento com doxiciclina. Resolução do bloqueio átrio-ventricular, com retorno ao ritmo sinusal. (Fonte: Pedro Diniz, arquivo pessoal).

 

Este exemplo ilustra a presença de alterações cardíacas na erliquiose canina. De fato, no nosso estudo com 194 cães naturalmente infectados por E. canis em Botucatu, São Paulo (5), usando eletrocardiografia, ecocardiografia e o marcador molecular troponina I – que é o padrão-ouro para a detecção de lesões em células cardíacas (6) -nós detectamos que:

  1.  46% dos cães com infecção aguda apresentaram elevações na troponina I, indicando lesão cardíaca;
  2. O risco de lesão cardíaca foi 2,7 vezes maior em cães com erliquiose aguda do que em outros cães doentes;
  3. Cães com PCV<15% tiveram quase 10 vezes mais chance de desenvolver lesão cardíaca;
  4. 22% dos cães infectados por E. canis tiveram arritmias e distúrbios na condução cardíaca incluindo complexos ventriculares prematuros (VPC), bloqueios átrio-ventriculares e de ramos cardíacos;
  5. Um terço desses cães teve alterações ecocardiográficas, como redução na contratilidade cardíaca e cardiomegalia.

Nossos achados foram confirmados por um estudo similar na África do Sul, onde 52% dos cães com erliquiose tiveram elevações na concentração plasmática de troponina I, indicando lesão miocárdica (7).

 

Portanto, veterinários devem estar atentos a presença de alterações cardíacas em cães suspeitos de erliquiose. Os passos listados abaixo auxíliam no diagnóstico e tratamento dessas alterações:

  1. Avalie o ritmo cardíaco por pelo menos 2 minutos durante a auscultação e palpe o pulso femoral simultaneamente para detectar déficits de pulso.
  2. Em caso de suspeita de arritmias, sempre realize um eletrocardiograma de pelo menos 5 minutos. Se a suspeita persistir, faça um exame de holter (ECG de 24 horas).
  3. As arritmias devem ser tratadas de acordo com o tipo. Distúrbios de condução (bloqueios atrioventriculares ou de ramos cardíacos) geralmente não necessitam de tratamento se não houver bradicardia severa ou hipotensão. Arritmias ventriculares (VPC) devem ser tratadas somente se presentes em grande número e se indicarem risco para a ocorrência de taquicardia e fibrilação ventriculares. Fatores extra-cardíacos (como anemia, febre, desidratação) devem ser corrigidos pois também causam arritmias.
  4. O tratamento ideal da miocardite em cães ainda é desconhecido. Em humanos e em animais de laboratório, o uso dos inibidores da enzima de conversão da angiotensina (benazepril) e diuréticos (furosemida) auxiliam na redução da inflamação miocárdica e do esforço cardíaco.
  5. Beta-bloqueadores (atenolol, propranolol) estão associados à maior sobrevida em humanos, mas só deve ser utilizados se não houver redução na contratilidade cardíaca, confirmada por ecocardiografia.Caso ocorra redução significativa da contratilidade cardíaca, terapia com pimobendam deve ser iniciada.
  6. Anemia severa deve ser imediatamente tratada com transfusão sanguínea.
  7. Não exclua o diagnóstico de erliquiose caso o esfregaço sanguíneo seja negativo. PCR ou sorologia são muito mais sensíveis e específicos. Caso estes testes não possam ser realizados, o esfregaço de leucócitos concentrados por microcentrifugação em tubo capilar apresenta melhor sensibilidade do que esfregaço de sangue total (8).
  8. O tratamento com doxiciclina na dose de 5 mg/kg PO a cada 12 horas deve ser iniciado o mais cedo possível e não deve ser interrompido antes de, no mínimo 28, dias consecutivos. Não use imidocarb para o tratamento de erliquiose canina, pois não é eficaz (9), mas deve ser utilizado se a suspeita de co-infecção com Babesia canis existe. O uso de glicocorticóide deve ser evitado na presença de miocardite, pelo risco de efeitos deletérios ao coração (10).

Em conclusão, pelo menos um terço dos cães com erliquiose podem desenvolver anormalidades cardíacas, que raramente são identificadas pelos clínicos. O diagnóstico e tratamento adequado da lesão cardíaca pode colaborar com a redução na mortalidade pela erliquiose canina.

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Referências

1.      Vieira RF, Biondo AW, Guimaraes AM, Dos Santos AP, Dos Santos RP, Dutra LH, et al. Ehrlichiosis in Brazil. Brazilian journal of veterinary parasitology. 2011;20(1):1-12. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21439224

2.      Dantas-Torres F. Canine vector-borne diseases in Brazil. Parasites & vectors. 2008;1(1):25. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18691408

3.      Fishbein DB, Dawson JE, Robinson LE. Human ehrlichiosis in the United States, 1985 to 1990. Annals of internal medicine. 1994;120(9):736-43. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8147546

4.      Kumar A, Varshney JP, Patra RC. A comparative study on oxidative stress in dogs infected with Ehrlichia canis with or without concurrent infection with Babesia gibsoni. Veterinary research communications. 2006;30(8):917-20. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17139542

5.      Diniz PP, de Morais HS, Breitschwerdt EB, Schwartz DS. Serum cardiac troponin I concentration in dogs with ehrlichiosis. Journal of veterinary internal medicine. 2008;22(5):1136-43. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18638021

6.      Oyama MA. Using cardiac biomarkers in veterinary practice. The Veterinary clinics of North America Small animal practice. 2013;43(6):1261-72, vi. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24144089

7.      Koutinas CK, Mylonakis ME, O’Brien PJ, Leontides L, Siarkou VI, Breitschwerdt EB, et al. Serum cardiac troponin I concentrations in naturally occurring myelosuppressive and non-myelosuppressive canine monocytic ehrlichiosis. Veterinary journal. 2012;194(2):259-61. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22633176

8.      Santarem VÁ. Achados epidemiológicos, clínicos e hematológicos e comparação de técnicas para diagnóstico de Ehrlichia canis. Botucatu, SP: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”; 2003. http://base.repositorio.unesp.br/handle/11449/101322

9.      Eddlestone SM, Neer TM, Gaunt SD, Corstvet R, Gill A, Hosgood G, et al. Failure of imidocarb dipropionate to clear experimentally induced Ehrlichia canis infection in dogs. Journal of veterinary internal medicine. 2006;20(4):840-4. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16955806

10.    Shober KE. Myocarditis. In: Bonagura JD, Twedt DC, editors. Kirk’s Current Veterinary Therapy. XV. St. Louis, MO: Elsevier Saunders; 2014. p. e303 – e308. http://www.currentveterinarytherapy.com/webchapters/webchapter63.php

 

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